Unidos pela desgraça – o negro e o judeu
Voltando à leitura do livro Pele Negra, Máscaras Brancas, de Frantz Fanon nesta manhã, me deparei novamente com esta citação:
“Uma vergonha!
O Judeu e eu: não satisfeito em me racionalizar, por um feliz acaso, eu me humanizava. Eu me unia ao judeu, irmãos na desgraça.
Uma vergonha!
À primeira vista, pode parecer surpreendente que a atitude antissemita se assemelhe ao negrófobo. Foi um professor meu de filosofia, de origem antilhana, que me alertou um dia: ‘Quando ouvir falar mal dos judeus, fique atento, estão falando de você’. E achei que ele tinha razão num sentido universal, compreendendo naquilo que eu era responsável, em meu corpo e em minha alma, pelo destino reservado ao meu irmão. De lá para cá, entendi que ele basicamente queria dizer: Um antissemita é necessariamente um negrófobo.” (Fanon, 2020, p. 136).
Tenho esta mesma dedicação do autor, tentar entender o ódio aos negros (que estendo aos meus irmãos judeus), sinto ainda hoje que o ódio aos negros é intenso, cruel e disfarçado. Ouço: “eu até tenho um amigo negro”, “imagina – racismo não existe”. Sempre somos vistos com algum olhar de espanto quando ascendemos socialmente, quando frequentamos bons restaurantes, andamos na primeira classe do avião, frequentamos ótimos hospitais, quando dirigimos bons carros, moramos e trabalhamos em ótimos bairros.
Na belle époque colonial, candidatos negros a cargos públicos enfrentavam barreiras institucionais que os forçavam a renunciar à sua identidade racial, o que evidencia o racismo estrutural: “você, escurinho pretendente a cargo público, tinha que assinar um documento abdicando oficialmente a cor da pele” (orelha do livro). (Gonçalves, 2024).
Há algum tempo, uma amiga me disse que começou a prestar mais atenção em todas estas questões depois que leu um artigo que publiquei aqui no offlattes.com – O ódio à ascensão social dos negros, artigo este em relação aos negros que sofrem racismo porque ocupam lugares de destaque social. É mais comum falar dos negros que já ocupam a margem da sociedade e, alguns grupos até gostam disso (que sejamos subservientes). Temos que lidar com este desafio social: a cor da pele, quanto mais escura, mais difícil de lidar com esse aspecto da identidade. Por isso, a criação da lei antirracista promulgada é tão importante. Volto ao início: racismo e antissemitismo são crimes, ponto final.
Corto para outubro de 2023. Estava dirigindo meu carro quando uma amiga judia me ligou chorando muito. Um atentado cruel em território israelense. Naquele instante sabia que a questão do antissemitismo iria explodir junto com toda aquela tragédia, corroborando tantos mitos… e um deles: que judeus são parasitas, “eles vivem como parasitas sugando o suor daqueles que labutam para sobreviver e pagar seus impostos.” (Carneiro, 2019, p. 216). Naquela ocasião, lembrei do que os pais e avós desta minha amiga contavam. E ela também começava a sentir isso na pele e, de maneira geral, na pele mais branca (como são conhecidos a maioria dos judeus).
Desde aquele momento (a partir de 7 de outubro de 2023), amigos e pacientes judeus foram afetados em seu bem-estar físico e, principalmente emocional, tanto em suas casas como no ambiente profissional. Muitos ainda hoje não conseguem sair de suas casas, com medo de serem agredidos, simplesmente por serem judeus. Infelizmente até em universidades, locais que deveriam ser campos absolutamente saudáveis para que todas as pessoas possam existir igualitariamente.
Funcionários nas empresas, negros e judeus, sofrem com o preconceito disfarçado, a pele mais escura e a pele mais clara se unem na desgraça; há muitos comentários microagressivos, que deixam as pessoas mais fragilizadas e criam vários estigmas. Estes pequenos “comentários” são grandes problemas, porque os preconceitos, como sabemos, colam muito rápido e também se espalham como doenças.
Posso dizer que as pessoas estão mais fragilizadas e sofrendo cada vez mais, necessitando de atendimento médico e psicológico. Como psicólogo e homem negro retinto, percebo como a ansiedade e depressão cresceram neste grupo, uma verdadeira desgraça. Um relatório da OMS (Organização Mundial de Saúde, 2023) aponta que o risco de suicídio da população negra aumentou em 12% nos últimos anos.
Os judeus sofrem com os quadros de ansiedade e depressão e transtorno do stress pós-traumático, após os atentados de outubro de 2023, de acordo também com o relatório da OMS e tudo isso impacta famílias e locais de trabalho.
Como profissional da saúde mental, percebo a importância dos tratamentos para superação de traumas relacionado a essas vítimas de discriminações, porque, como sabemos, a maioria dos agressores não vão procurar tratamento. E “agressores” nunca se acham agressores. Racistas e antissemitas não acham que estão errados, eles operam numa outra lógica de pensamento. E, por isso a importância das leis e, é claro, sua correta aplicação.
Combater o racismo e o antissemitismo é um dever de cada um de nós, um grande desafio para a sociedade, por isso a educação é fundamental. É fundamental educar as pessoas nos ambientes de trabalho para que não reproduzam comportamentos criminosos, para que pensem nos efeitos maléficos que atingem a produtividade do funcionário. A lei do silêncio não pode imperar em nenhum ambiente quando se trata de discriminação.
Racismo e antissemitismo não têm cura, ocorreram no passado, continuam no mundo presente e vão persistir no futuro, por isso não podemos ser ingênuos; precisamos cuidar das nossas pessoas queridas, procurando oferecer uma rede de apoio, tanto profissional como pessoal para esse “fenômeno” (criminoso) crônico. Como diz Viktor Frankl, já caímos num vazio existencial profundo, que se manifesta como angústia e tédio. Nosso autor sugere que fiquemos alerta, em duplo sentido: “Desde Auschwitz nós sabemos do que o ser humano é capaz e desde Hiroshima nós sabemos o que está em jogo”.
Educação e saúde precisam andar cada vez mais juntas para espaços de inclusão e respeito. Devemos abordar abertamente esses temas com coragem para transformar, dentro do possível, a sociedade e dar subsídios para que as novas gerações possam mudar esse cenário e os efeitos da discriminação. Poderia ter trazido aqui mais inúmeros exemplos de comentários antissemitas e racistas já ouvidos em todos os ambientes. Mas, caro leitor, creio que você já tenha ouvido também. Não vamos repeti-los.
Francisco Carlos Gomes
Psicólogo Clínico e Logoterapeuta. Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. Fundador e diretor clínico do Núcleo de Logoterapia AgirTrês. Coordenador do grupo de pesquisa “O vazio existencial na contemporaneidade e as possibilidades de realizar sentido” do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ