A pele mais escura

A pele mais escura
contorna um ser que resiste
ao racismo e à barbárie deste mundo.

A pele mais escura
é o mapa da memória de culturas dizimadas,
histórias interrompidas, descartadas dos arquivos.
Esquecidas? Talvez o fio das narrativas, a genealogia,
mas as cicatrizes que rasgam a alma e a pele preta se lembram…
e os olhos das pessoas, que ora nos encaram, ora desviam o olhar, também.
Os olhos que acendem a violência de seu corpo contra o nosso, na voz, no punho, no enquadro, na pistola…

A pele mais escura
de Moïse, Lucas, Marielle, Kathlen, de meninos Miguel e Guilherme e tantas
e tantas outras se encontram
no vulcão odioso do acontecimento, alimento de polêmicas fugazes
rapidamente abafadas na frieza da estatística:
77% das vítimas de homicídio no Brasil são negras.
A porcentagem assusta? Sim, mas ela te angustia ou te alivia?
Silêncio.

A pele mais escura
é a última na fila na tentativa de embarcar para longe da guerra,
ou é barrada na fronteira da Ucrânia,
em pleno 2022.
Em guerra estamos há tantos anos,
mesmo com tantos alertas de quem conseguiu sobreviver a elas,
“…porque o mundo está numa situação ruim. Porém, tudo vai piorar ainda mais se cada um de nós não fizer o melhor que puder. Portanto fiquemos alerta – alerta em duplo sentido. Desde Auschwitz nós sabemos do que o ser humano é capaz. E desde Hiroshima nós sabemos o que está em jogo”,
escreveu Viktor Frankl, em busca de sentido, depois da última grande guerra.
Estamos tão desatentos assim?
Desolação.

A pele mais escura
expressa a complexidade da composição racial brasileira.
Declaro-me preto, por reconhecer minha ascendência africana.
Declaro-me negro na estatística que soma pretos e pardos nesse grupo racial.
Os números contam que somos a maioria da população deste país desde de 2007.
E quando a pele mais escura se autodeclara,
ela se encontra ao grande coro de nós:
– apesar de tudo, estamos vivos! Estamos vivos
à flor da pele.
40 anos depois do início do Movimento Negro Unificado,
em 2018 entramos no Theatro Municipal de São Paulo com Emicida e outros artistas.
Ano passado eu morri, mas este ano eu não morro” atualizou o significado do que é ser um sujeito de sorte.
Em 2021, ocupamos a cena cultural paulistana: Sueli Carneiro, referência do feminismo negro nacional, no Itaú Cultural, e a escritora Carolina Maria de Jesus, no Instituto Moreira Salles .
Em 2022, nossa musa e voz do milênio, Elza Soares, estampou capa de revista que celebrou a sua obra e destacou 50 personalidades negras do nosso país. Vivos, cantamos seu legado:
Minha voz, uso para dizer o que se cala. O meu país é meu lugar de fala”.

Estamos vivos
e com muita resistência afirmativa.É nessa que acredito como potencial de mudança.
Aprendi com Silvio Almeida que
a mudança da sociedade não se faz apenas com denúncias ou com o repúdio moral do racismo. Depende, antes de tudo, da tomada de posturas e da adoção de práticas antirracistas”.

Por isso, vivo.
Exalto nossa pele mais escura,
nossa ousadia,
a beleza de nossa singularidade
e a potência de nossa coletividade.
“Eu sou porque nós somos”.

 

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Referências Bibliográficas:
(incluindo algumas referências e inspirações para uma educação e prática antirracista)

Almeida, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro/Pólen, 2019.
Frankl, Viktor E. Em busca de Sentido: Um psicólogo no campo de concentração. Traduzido por Walter O. Schlupp e Carlos C. Avelline. 25 ed. Petrópolis. Vozes 2008.
Gortázar, Naiara G. Emicida: “Nossos livros de história são os discos”. [Entrevista]. El País, São Paulo: 11 dez. 2020. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2020-12-11/emicida-nossos-livros-de-historia-sao-os-discos.html>
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da Violência. 2021. Disponível em:<https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/3956-dashboard-atlas-2021.pdf>
Mantovani, Flávia. Imigrantes negros na Ucrânia dizem ser alvo de racismo e barrados em trens ao tentar fugir. Folha de São Paulo, 28 fev. 22. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/02/pessoas-negras-na-ucrania-dizem-ser-alvo-de-racismo-e-barradas-em-trens-ao-tentar-fugir.shtml>
Pinheiro, Daniela. Fotógrafo português na Ucrânia relata: ‘quem tem pele escura não passa’… Tab Uol, 5 mar. 22. Disponível em: <https://tab.uol.com.br/colunas/daniela-pinheiro/2022/03/05/fotografo-portugues-na-ucrania-relata-quem-tem-pele-escura-nao-passa.htm>
Revista Piauí. Voz do Milênio. n. 185, 4 fev. 2022. Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/na-piaui_185/>
Ribeiro, Djamila. Pequeno Manual antirracista. 1 ed. – São Paulo. Companhia das letras, 2019.
Soares, Elza; Germano, Douglas (compositor). O que se cala. Deus é mulher (álbum oficial de 2018). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Kw9ke8zt7XA>
Ocupação Sueli Carneiro. Itaú Cultural, de 28 ago a 31 out. 2021. Disponível em: <https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/sueli-carneiro/>
Carolina Maria de Jesus – um Brasil para os brasileiros. IMS – Instituto Moreira Salles, de 25 set. 2021 a 27 mar. 2022. Disponível em: <https://ims.com.br/exposicao/carolina-maria-de-jesus-ims-paulista/>
Potências Negras – a jornada para empoderar pessoas negras e combater o racismo. <https://www.linkedin.com/company/potenciasnegras>
Escurecendo Fatos – raça, paternidade e política. <https://www.instagram.com/escurecendofatos/>
Coletivo Di Jeje – por um mundo livre de opressão racial. <https://coletivodijeje.com.br/>

Francisco Carlos Gomes

Psicólogo Clínico e Logoterapeuta. Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. Fundador e diretor clínico do Núcleo de Logoterapia AgirTrês. Coordenador do grupo de pesquisa “O vazio existencial na contemporaneidade e as possibilidades de realizar sentido” do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ